a muitas mãos

Rodou o puxador metalizado da porta a 180 graus e fechou-a devagarinho atrás de si, invertendo o sentido do puxador e do futuro. Caminhou estrada fora durante uns minutos, sempre a olhar para A janela, mas quando chegou ao final da rua foi como se lhe tivessem partido um serviço de loiça na boca do estômago. Começou a correr e só parou quando já não conseguia aguentar a dor de burro. “Já está, consegui”, disse o cérebro ao corpo, enquanto os olhos se fixavam na sua triste figura reflectida nos painéis publicitários das paragens de autocarro.
foto-esfera
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Podia ter acontecido ontem ou cinco anos atrás. Sentia agora que, se calhar, tinha sido preciso passar aquele tempo todo: exactamente seis anos, dois meses e catorze dias.
Enquanto recuperava o fôlego da corrida (afinal, porque lhe faltava o ar, logo a ele, que estava habituado a abusar do corpo, a levá-lo tantas vezes ao limite onde a taquicardia definitivamente acaba?), cruzou-se com a memória desse dia.
moulin-rose
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Trazias uma t-shirt branca não muito justa, o cabelo solto e um sorriso que me desarmou ao primeiro olhar. Pediste-me que tirasse a camisa e me deitasse num tom de voz tão baixo que me foi difícil perceber o que dizias. Obedeci-te prontamente, expectante. Observei todos os teus gestos: o acender do incenso, o correr da persiana, o gesto profissional com que aquecias sempre as mãos uma na outra.
mercuriocromo
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Esse fora, na verdade, o primeiro dia da memória. Recordava-o sempre com a mesma comovida estranheza, sempre a mesma sensação de ter assistido ao próprio parto.
Quando, recomposto do esforço, se viu de novo reflectido sobre um qualquer anúncio de comida para cão, achou que o corpo não lhe assentava bem. Sentiu-o demasiado velho e vários números acima da memória franzina que trazia consigo. E só então se deu conta das palavras que o acompanhavam desde o primeiro minuto. Eram a legenda do poster desbotado ao lado d'A janela. Lera-as apenas uma vez, naquele dia. Mas foi como se o seu cérebro as tivesse sugado para dentro de si devido a uma inexplicável ausência de pressão: "O ponto VG11 (Shendao) situa-se no dorso, entre os processos espinhosos da 5a e 6a vértebras torácicas. A agulha atravessa a pele, o tecido celular subcutâneo e os ligamentos supra-espinhal e interespinhal e atinge o ligamento amarelo; relaciona-se superficialmente com os ramos cutâneos do ramo dorsal do 5º nervo torácico e, profundamente, com o ramo dorsal do 5º nervo torácico. A estimulação deste ponto está indicada em situações de ansiedade, tristeza, perturbação mental, amnésia..."
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(quero-te bem empenhada nesta história, pode ser?...)

Chegou novamente com a respiração ofegante e abriu outra vez o puxador metalizado, agora já com medo de ser repreendido. Tinha saltado sem parar só para chegar aquela sala às oito horas em ponto. Tinha que ser às oito horas. Fez o que devia ser feito. Deitou no lixo os pedaços de papel que trazia nos bolsos, atirou as sapatilhas para o canto da sala, tirou os restos de baton da cara e deitou fora a tela, com aquela mulher estampada, que estava pendurada à direita da sua cama. E o corpo foi atrás do sofá azul marinho. Naquele dia conseguia prometer à senhora da sala n.º22 que no dia seguinte não acordaria às 5 da manhã a declamar poesia aos berros e nem ouviria Rachmaninov ao pequeno-almoço. No dia seguinte também tinha marcado na sua agenda um único encontro. Talvez o terceiro da sua vida. Desta vez era necessário calçar os sapatos pretos e a gravata escura. o fato ainda tinha que o ir comprar.

(talvez um fato escuro ou uma gabardina. escolham os senhores)