ainda não somos mas seremos ainda mais

nem sempre podemos dizer aqui tudo o que nos apetece, o que escrevemos à primeira, as ideias que passam da cabeça para os dedos sem darmos conta. nem sempre fica bem insistir nas infelicidades da vida, mas também, por vezes, não podemos espalhar a notícia de que estamos tremendamente assustados com a felicidade.
coisas que surgem com a calma devida, coisas que têm anos de história, coisas que estão na memória, coisas que ganham vida, coisas que, ao final do dia, se abraçam e entrelaçam de tanta saudade.
às vezes fica-nos mal chorar no trabalho porque estamos felizes, quando o trabalho é infeliz e quando alguém ao nosso lado não está bem de saúde.
fica-nos tão mal perder 20 minutos à procura de uma música para enviar por e-mail, porque o sorriso é matreiro e o coração já nos atraiçoou.
fica-nos tão mal amar demais quando à nossa volta há tanta falta de amor.


porque ficamos tão bem quando sabemos administrar sabiamente a felicidade, com a certeza que um dia já não nos ficará mal dar um beijo, dar as mãos, dar testemunho, dar gargalhadas, dar a vida, dar o que ainda não temos.
porque um dia cantaremos e dançaremos no tal concerto, com a mesma ingenuidade de quem nunca viveu outro amor.
porque um dia as partidas e as chegadas serão apenas saudades e nada mais do que a confirmação do que já dissemos bem antes de partir.

Ó pedaço de mim, ó metade afastada de mim
Leva o teu olhar, que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar.

Ó pedaço de mim, ó metade exilada de mim
Leva os teus sinais, que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais.

Ó pedaço de mim, ó metade arrancada de mim
Leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.

Ó pedaço de mim, ó metade amputada de mim
Leva o que há de ti, que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada no membro que já perdi.

Ó pedaço de mim, ó metade adorada de mim
Lava os olhos meus, que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo a mortalha do amor, adeus.

Chico Buarque