com que linhas faço uma flor

"Pede-se a uma criança - desenhe uma flor.
Dá-se-lhe papel e lápis.
A criança vai sentar-se no outro canto da sala, onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo, o papel está cheio de linhas, umas numa direcção, outras noutra, umas mais carregadas, outras mais leves, umas mais fáceis, outras mais custosas.
A criança quis tanta força em certas linhas, que o papel quase que não resistiu. Outras, eram tão delicadas , que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas.
Uma flor.
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor. Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor.
E a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas... Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor." José de Almada Negreiros

Se apontasse no meu bloco todas as pessoas que ontem me passaram pelo coração ficaria surpreendida comigo mesma. Muitas, algumas sem razão e outras com tanto sentido.
Porque razão é que nos lembramos de pessoas sem sentido e qual o sentido de nos lembrarmos de pessoas com toda a razão de ser? Porque razão nos lembramos tanto e tanto de uma pessoa durante o dia e não somos capazes de lhe telefonar para dizer isso mesmo: "hoje estiveste dentro de mim". Com que sentido trocamos a intensidade das nossas linhas? Com que razão gostariamos de trocar os lugares das linhas? Com que sentido é que andamos sempre com uma boracha nos bolsos para apagar os erros do lápis? Qual o sentido de uma flor que não parece uma flor?