cântico negro
Quem esteve comigo estes dias sabe o quanto me apaixonei por esta figura urbana que deambulava pela marginal de Natal desde as 5 horas da manhã até ao anoitecer. com mais de 10 vassouras, cada uma com o seu estilo próprio, com mais de 10 sacos de plásticos com cores diferentes, com um carroça de madeira velha e não menos velha que um rosto negro que não devia ter mais do que 30 anos. deambulava e trazia um chapéu laranja feito de linha, umas calças leves azuis gastas e umas galochas a romperem as calças. procurava em todos os caixotes do lixo a sobrevivência e talvez não fosse o único que o fizesse. em Natal eram muitos os que procuravam no lixo a vida.
não consigo deixar de pensar nos passos que este homem foi dando ao longos dos dias e fico com o corpo inteiramente estranho quando penso que fará este mesmo trajecto ao longo de toda a vida.
mesmo assim, olhou para a máquina fotográfica e sorriu. penso que todos os dias me sorria porque sabia que andei a vigiá-lo. não sei se por vergonha, se por egoísmo de quem tem uns sapatos de pele para calçar todos os dias, não fui falar com ele.
não quero ter o mesmo trajecto para toda a minha vida, nem mesmo procurar no lixo a vida, embora consiga perceber que o sustento e a felicidade deste homem possa passar por aí. apetece-me dizer em voz alta o mesmo cântico que José Régio escreveu e enviar para a minha própria caixa do correio as suas últimas palavras:
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí.
no final de contas... se ontem tivesse coragem tinha ido por ali... e os meus pés sentiriam a mesma terra que tu e os meus olhos olhariam o mesmo céu que tu. o convite ficou no ar e o meu coração também. Benguela já é o nosso lugar.
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